Voltei a Porto Príncipe entre 20 e 27 de abril. Portanto, estava lá quando completaram-se cem dias desde a catástrofe de 12 de janeiro. Vi paradoxos. E são esses paradoxos que deverão delinear os passos da igreja internacional acerca da igreja haitiana daqui por diante.
Paradoxo 1º: Há comida, mas não há dinheiro
Nas duas vezes anteriores em que nos propusemos a ajudar as igrejas haitianas, compramos alimentos na República Dominicana e trouxemos em caminhões. Ainda em Janeiro, não se encontrava alimento no país. Em março já havia, mas os preços eram proibitivos. Agora já não compensa buscar em outro lugar.
A cesta básica no Haiti não deve ser nem de longe uma das mais baratas do mundo. Mas seria viável, se estivéssemos falando de uma economia sólida. A oferta de alimentos, porém, diz respeito ao novo perfil populacional baseado em ONGs internacionais. Curiosamente, os supermercados estão reabrindo e o fornecimento existe, para alimentar quem supostamente vai servir a nação.
O povo, porém, continua sem trabalho – a maior parte dos comércios ruiu, bem como as instituições educacionais e os prédios públicos. Não há sustento. A necessidade ainda é praticamente a mesma, e os projetos humanitários mais eficazes no Haiti serão aqueles que vislumbrarem fornecer empregos e desenvolver sustentabilidade.
Paradoxo 2º: Há esforço massivo pela limpeza e reconstrução; os avanços, porém, foram pequenos
Não é possível quantificar os escombros resultantes da tragédia de janeiro sem ver pessoalmente o local. É muita pedra. Não se mede por fotografia ou filmagem. Especialistas falavam em um ano de esforço ininterrupto para limpar a capital. Já se vão quase quatro meses, e talvez 10% de Porto Príncipe já possa pensar em receber novas obras. Sem contar os arredores, onde os escombros sequer devem ser retirados. Nas periferias, ainda há corpos sob os prédios.
Paradoxo 3º: As ONGs estão lá, mas o trabalho é confuso
Há muito interesse em torno do Haiti. Os vôos que chegam à capital trazem grupos uniformizados representando entidades de várias nações. É fenomenal. Mas como o governo local é desestruturado (e isso, creia, é pré-catástrofe!), não há coordenação. As tropas da ONU que patrulham a cidade estão diminuindo: alguns países sentem que sua missão já está cumprida. Em várias regiões há grandes organizações trombando suas intenções humanitárias, enquanto outras permanecem sem qualquer ajuda.
Paradoxo 4º: Há lágrimas, mas há esperança
Por último, creio que esse seja o portal de entrada para a igreja de Cristo. Em nossas primeiras incursões, notamos uma reação estranha nos cristãos, por exemplo. Comentavam sobre seus finados parentes e amigos com naturalidade estranha; pareciam congelados pelo impacto, mais preocupados em conservar a própria sobrevivência naquele momento de pânico.
Agora, vimos lágrimas. Sim, muitas lágrimas. As esposas de pastores choram, os pastores se deprimem, parece que a ficha começa a cair. Os estudiosos afirmam mesmo que leva-se de 60 a 90 dias para que uma tragédia coletiva comece a gerar os mais graves efeitos psicológicos.
Por outro lado, mesmo que em meio às lágrimas a igreja espera em Deus. Os pastores assumem que somente a igreja de Cristo será capaz de transformar o Haiti de forma eficaz, a partir de novas bases. A igreja sonha em curar, em educar, em alimentar. As comunidades cristãs têm sido a embaixada da esperança, o lugar de refúgio daqueles que nada têm. E essa esperança, o Deus da graça sempre vai ofertar.
Mário Freitas é pastor, missiólogo e coordena trabalhos humanitários junto à igreja haitiana desde Janeiro de 2010.